segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Memória; Lembranças nos trilhos do Bonde 37

A São Paulo dos bondes, mais especificamente a Lapa e o Anástacio nos tempos do bonde são lembranças revividas por Roberto Flügge no site São Paulo Minha Cidade , da SPTuris (Prefeitura de São Paulo)


"Meninos, acreditem, vivi minha infância e adolescência em uma São Paulo que tinha bondes elétricos! As linhas eram geralmente radiocentricas, ou seja, convergiam para o centro da cidade. A linha 37 Anastácio era uma exceção, pois partia da Lapa, em direção ao bairro do Anastácio, pelas seguintes ruas: Doze de Outubro, Barão de Jundiaí, Brigadeiro Gavião Peixoto, Laurindo de Brito e João Tibiriçá, até as porteiras da Estrada de Ferro Sorocabana (onde hoje é a estação Domingos de Morais da CPTM).


Era uma linha singela, que em seu trajeto possuía três desvios, para permitir a circulação de mais de um bonde na linha. Na realidade, apenas um bonde percorria a linha, que recebia o reforço de mais um carro no período do pico, à tarde. Esta linha passava em frente à minha casa (Rua Laurindo de Brito) e ao Colégio Campos Salles, onde eu estudava. Era pois, a condução natural para ir à escola.


Um só bonde na linha? Sem problemas, pois além de manter razoavelmente o horário, ninguém tinha pressa como hoje. Mais um detalhe: o ônibus custava um Cruzeiro e o bonde cinqüenta centavos. Todo dia minha mãe me dava um Cruzeiro para poder ir e voltar da escola.


- Mãe: me dá dois Cruzeiros, hoje quero ir e voltar de ônibus.
- Dinheiro não nasce em árvore, ouviu! Tome um Cruzeiro e vá de bonde!


Quem disse que o dinheiro era usado na compra da passagem do bonde? Um Cruzeiro, na hora do recreio, rendia uma guaraná; só que eu queria também um chocolate.


E como fazer para ir e voltar da escola de graça? Existiam diversos meios. O melhor deles era fazer um "fundo de reserva" para comprar mensalmente uma caixa de charutos para o cobrador amigo e as viagens saiam de graça para a molecada.


- Ei cobrador! Aquele moleque ali ó, não colaborou com a vaquinha. É um frescão!!
- Moleque safado! Vai logo pagando a passagem que aqui não tem moleza não!

Minha mãe diz ao meu pai:
- Acabo de ver o bonde passar; estava quase vazio, com o cobrador sentado no banco, de pernas cruzadas, fumando charuto! Que ridículo!

Saio de fininha até o fundo do quintal para dar uma gargalhada!

O cobrador amigo não trabalha hoje. É o seu dia de folga! Deu zebra! A solução é dar uma de "Miguel". Você fica no estribo, sempre na posição contrária ao cobrador, e vai circulando para ele não te pegar. A isto se chama "chocar" o bonde. O problema é que certos cobradores detestam "chocadores". Aí começa um pega pega dentro do bonde e senhoras a bordo põe a boca no trombone contra estes malditos pivetes. Neste caso, se você não tem um trocado extra no bolso, é melhor ir para casa a pé.


Os bancos do bonde são para adultos, meninas e maricas. Moleque que não é marica gosta de viver perigosamente e anda no estribo. Jamais desce no ponto; só desce do bonde andando.

- Mãe, tchau, estou indo para a escola.
- Vou com você; tenho que fazer umas compras na Lapa. Nesse dia o negócio é ir quieto e sentadinho ao lado da mãe. O maldito moleque que você mais detesta está no estribo, do seu lado e diz baixinho:
- Maricas...

- Moleque, ai se te pego no estribo do bonde!
- Eu não ando no estribo, mãe! Os outros, sim, mas eu vou lá dentro sentadinho!
Grande mentira!

Chegando à escola você percebe que a porta está cheia de alunos a alunas. No meio deles está aquela supergarota de quem você está a fim. Você vai descer do bonde andando, só que de costas. Como se faz isso? Coloque se no estribo de costas no sentido contrário ao do bonde e prepare as pernas uma bem para frente e a outra o mais para trás que você conseguir. Salte lançando todo o corpo para frente como se estivesse se jogando no chão e apóie se no primeiro momento somente na perna que estiver a frente. Devido a inércia, o seu corpo tenderá a ir para trás, ocasião em que você deverá travá-lo com a perna de trás. É um belo salto em que o figurante fica no lugar e não precisa dar aquela feia corridinha para vencer a inércia, quando salta de frente. A alegria é completa quando você arranca um Oh!! de admiração da garota em questão. Conselho de amigo: se você não sentir firmeza não o faça! Pode ser desastroso.

O motorneiro do período da manhã está sempre de cara amarrada. Um dia, de saco cheio de tanta molecagem, para o bonde e prega o maior sermão. Nós o detestamos. A medida que fomos crescendo, porém, começamos a gostar dele. Percebemos que ele estava preocupado com a segurança da garotada.

A linha era um caco velho. Motorneiro novo metido a corredor era sinônimo de descarrilamento na certa! Não posso jurar, mas creio que a média era de um descarrilamento por semana!

Hoje o motorneiro é o Mário. Legal! Sou amigão dele e posso ficar na cozinha junto com mais um amigo. Já sei, você não sabe o que é cozinha! É o seguinte: o bonde tem duas cozinhas, uma em cada ponta, de onde o motorneiro dirige o bonde.
"O Mario é diferente! Dirige no maior pau! Não tem linha ruim para ele. Sabe onde brecar e acelerar nos lugares exatos. Dirige na velocidade máxima possível em cada trecho e tem um orgulho: nunca descarrilou! Por onde andará meu amigo Mário? Gostaria de dar uma cópia desta crônica para ele.

Quando meu filho Sérgio tinha 8 anos levei o ao museu da CMTC e lá estava em exposição um bonde igualzinho ao da Linha Anastácio. Todo empolgado comecei a contar estas historias a ele. Embasbacado, sem tirar os olhos do jurássico veiculo, exclamou:
- Pai! Você ia à escola com ele? Porque tiraram? Porque você pôde andar nele e eu não? Dei um sorriso amarelo, deixei cair uma gota de lágrima e percebi o quanto eu era feliz e não sabia.

Observação:
- Não participei de todos os episódios aqui contados, mas dos que não participei, eu presenciei. Os mais perigosos eu evitava. Os acidentes mais graves se resumiram a tombos a escoriações, felizmente".

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